Por: Paulo Melo Sousa
Escrever sobre São Luís do Maranhão é um exercício que nos remete a uma espécie de exumação da memória. Revolver as entranhas de um tempo que existe apenas nos registros históricos, na fala das lembranças, na captura da oralidade dos que já se aproximam do próprio juízo final.
E num território no qual se respira poesia, sobretudo aquela praticada pelos que já partiram, surgem os versos de Vinícius de Moraes, extraídos de seu poema Cidade Antiga: “Houve tempo em que a cidade tinha pelo na axila / E em que os parques usavam cinto de castidade… / Houve tempo…e em verdade eu vos digo: havia tempo / Tempo para a peteca e tempo para o soneto / Tempo para trabalhar e para dar tempo ao tempo / Tempo para envelhecer sem ficar obsoleto…/ Eis por que, para que volte o tempo, e o sonho, e a rima / Eu fiz, de humor irônico, esta poesia acima”.
Na nostálgica Ilha dos Azulejos, embora boa parte de seus azulejos esteja hoje coberta pela sujeira estética de cartazes e panfletos, houve tempo em que São Luís ainda se espantava com as lendas da serpente encantada, da carruagem de Ana Jansen, puxada por enlouquecidas mulas sem cabeça, guiadas por um cocheiro, escravo dela, também decapitado, da Manguda que aparecia na antiga praia do Jenipapeiro, na parte de baixo da praça Gonçalves Dias. Houve um tempo em que se esbarrava na poesia em cada esquina das antigas ruas de calçamento de pedras pés de moleque, um tempo em que se empinava papagaios feitos pelas mãos habilidosas de Zé Caveira, tempo de brincar de pião, chuço, baladeira, de borroca nas areias que ainda existiam na cidade antes da introdução autoritária do asfalto. Tempo de passear de bonde respirando ar puro e de peito aberto pelo centro da cidade antiga sem medo de assaltos. Bons tempos!
Momentos menos atormentados, aqueles de outrora. A cidade mudou. Tudo muda, inclusive a mudança. Algumas modificações, contudo, foram para pior, como denuncia o poeta Nauro Machado, no seu poema Pequena Ode a Tróia: “Como te massacraram, ó cidade minha! / Antes, mil vezes antes fosses arrasada / por legiões de abutres do infinito vindos / sobre coisas preditas ao fim do infortúnio / (ânsias, labéus, lábios, mortalhas, augúrios), / a seres, ó cidade minha, pária da alma, / esse corredor de ecos de buzinas pútridas, / esse vai-e-vem de carros sem orfeus por dentro…”.
São Luís é uma cidade que ostenta o título de patrimônio cultural da humanidade, honraria recebida da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura – UNESCO no dia 6 de dezembro de 1997 em Nápoles, na Itália. São milhares de prédios tombados, o que garante à capital maranhense ser detentora do maior acervo arquitetônico com feição colonial e pombalina da América Latina. O que nos falta, com certeza, é o devido cuidado com esse tesouro patrimonial, por parte dos gestores, maior sentimento de pertencimento por parte da população, em suma, amor pela romântica Ilha do Amor.
Uma cidade também é feita de imaginação, de mistérios que marcaram uma época e a própria expressão poética de seus filhos, como se verifica nos versos do célebre poeta Bandeira Tribuzi, que se apropria desse imaginário lendário para fazer brotar a beleza: “Ó minha cidade / deixa-me viver / que eu quero aprender / tua poesia / sol e maresia / lendas e mistérios / luar das serestas / e o azul de teus dias…”. Embora o discurso sobre as coisas e, por extensão, sobre a cidade, sejam uma construção subjetiva, isso não invalida a elaboração do discurso, que passa a se incorporar à própria identidade da cidade, sendo a poesia a alma desse discurso. Contudo, a poesia não apenas captura a visão idealizada de uma cidade.
Ferreira Gullar, no contundente Poema Sujo, de 1976, escrito quando se encontrava no exílio, em Buenos Aires, reflete sobre São Luís a partir de uma outra pegada: “…O homem está na cidade / como uma coisa está em outra / e a cidade está no homem / que está em outra cidade….”. Na verdade, aí transpira uma digressão, na qual o poeta mescla uma reflexão sobre a linguagem, a existência humana, a memória, o diálogo entre as coisas e o ser.
Esse poema antológico de Gullar revelou as entranhas de uma cidade prospectadas fora da órbita das visões românticas e idealizadas. Daí o texto ser revelador, vertical, incisivo, evidenciando sua relevância exponencial. O homem, ampliando a visão do poeta, não precisa apenas estar na cidade, ele precisa sobretudo ser na cidade que habita.
O Centro Histórico foi concebido como unidade comercial e habitacional. É fundamental melhorar as condições de vida das pessoas que já moram ali, através da eficiência da infra-estrutura urbana, das questões ligadas à acessibilidade e de incentivo direto às melhorias dos prédios. É importante que novos moradores habitem a área. Ali também se pode desfrutar de apresentações culturais – Bumba-Meu-Boi, Tambor-de-Crioula ou o Cacuriá -, ou ainda topar com mestres que cumprem ofícios antigos, como é caso de sapateiros, alfaiates, ourives. As profissões tradicionais integram o conceito de patrimônio cultural imaterial que, segundo a UNESCO, é composto por “práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas”. É preciso valorizar esse patrimônio.
Nossa cultura gastronômica é invejável, com o cuxá à frente, como carro-chefe de pratos de dar água na boca, tais como o peixe pedra frito, a pescada amarela ao molho de camarão, o gurijuba no leite de coco, o caruru, a gengibirra, a juçara com farinha e camarão seco, com um digestivo de tiquira.
Em tudo e por tudo, São Luís possui um patrimônio que vai muito além do visível, e que se encontra ainda em permanente ebulição, podendo ser incrementado e explorado turisticamente, evidenciando o brilho da cidade patrimônio cultural da humanidade. Patrimônio que também respira na poesia, como nestes versos de José Chagas: “No alto dos mirantes / Me fiz e desfiz / Soprai-me, brisas errantes / Sobre toda São Luís…”.